São José, Santa Catarina, Brasil
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Edição Novembro | 2012
Ano XVIII - N° 198
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Walmir Espíndola Filho
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O primeiro Istepô

A palavra é o instrumento de mediação entre os seres humanos. Com ela, o homem constrói e dizima povos, ama e odeia, instiga e auxilia, mata e dá a vida. O mundo é escravo da persuasão do conjunto de letras e ideias expressas de maneira subjetiva em forma de textos. O escritor, por sua vez, é mensageiro do tempo, porque através dele é que o moribundo, à beira de sua sepultura, consegue brincar de Deus, e dizer em voz alta que é imortal, somente porque conseguiu escrever um livro e ficará em uma biblioteca, muitas vezes inerte, mas vivo.
A narração deste personagem começa num lugar distante do centro de Florianópolis, chamado de Praia da Solidão. Foi lá que viveu o manezinho Paterniano. Conhecido no lugar como Terninho. Um pescador que lutou contra a degradação do Meio Ambiente e jamais permitiu que naquela Praia fosse cometida alguma violência contra a fauna e, que ficou conhecido como o primeiro istepô.
Quem conhece a Praia da Solidão sabe que o acesso ao local é restrito a uma única estrada e, ainda hoje, continua de chão batido, interligando-se com a praia dos Açores.
Naquele ano veio fixar residência no local um casal de gaúchos. Glória e Clodoaldo compraram uma casa na vizinhança, onde Paterniano morava. No começo, a convivência foi das melhores, já que as personalidades insipientes dos brigadianos ainda não tinham aflorado. Os dias do casal, especialmente no verão, resumiam-se a banhos de sol e muita praia. Cerveja no bar e churrasco nos finais de semana eram os principais passatempos. Eles eram dois quarentões que diziam ser aposentados. Trajavam-se como tal.
Paterniano não era muito de conversa, e ainda mais quando se tratava de pessoas pouco conhecidas. Usava uma frase célebre: - Pelo andar da carruagem, eu já sei o que vem dentro? Era a opinião formada que tinha sobre os dois. Paterniano dizia que eles faziam muitas festas e que seus convidados sempre deixavam alguma sujeira por onde passavam. Realmente era verdade e sempre que o casal trazia alguns amigos, depois de muita bebida e comida, as latinhas de cerveja amanheciam por todos os lugares na praia, na calçada e na areia. Na última virada de ano, teve gente que até ficou nua, saltitando e gritando nomes de pessoas, provavelmente suas conhecidas. As festas tornaram-se mais frequentes. Pessoas bêbadas rondando pelos cantos escuros também. Aos poucos até um cheiro forte de erva queimada rondava o ar. Paterniano via e ouvia tudo o que se passava naquela Praia. À espreita, observava tudo. Não tinha o objetivo de entrar em conflito, mas por mais que evitasse, sempre ficava preocupado com tal situação. O seu Meio Ambiente estava sendo desrespeitado e isso lhe tirava o sono.
Tudo foi transcorrendo, apesar dos fatos ocorridos, com uma razoável normalidade, até que Paterniano se deparou com um fato extremo para o seu modo de pensar. Num sábado de verão, Paterniano se preparava para iniciar mais uma noitada de pesca. Na casa dos gaúchos rolava mais uma festa daquelas. O som estava um pouco mais alto do que das outras vezes e a vizinhança começava a demonstrar irritação. Paterniano, acompanhado de Lauro, um outro vizinho, foi até o rancho para retirar a lancha. Ao tentar abrir a porta, Lauro primeiro viu que já estava aberta e escutou alguns sons que, em princípio, pareciam gemidos de dor. Parou para escutar, empurrou a porta e se deparou com um casal mantendo relações sexuais dentro da sua canoa. O casal se espantou e catando as peças de roupa que estavam no chão, saíram aos risos. Paterniano, quando viu aquelas duas nádegas brancas correndo na praia, logo imaginou que tudo recomeçara na festa dos gaúchos. Sua irritação tornou-se maior porque os amantes, para adentrar no rancho, arrombaram a porta. Dali em diante, a pescaria não foi das melhores. Paterniano não conseguia esquecer a ousadia daquelas pessoas que se aproveitavam da hora e do local para fazerem orgias.
Ao voltarem da pescaria, viram que a festa já estava nas últimas, até porque os convidados mais afoitos estavam jogados na areia e outros permaneciam ali, seminus. Um único olhar de Paterniano, e Glória, com teor de álcool acima dos limites, perguntou em voz grosseira:
- O que foi velho pescador, gostou da bunda que viu? Quer ver a minha?
- Eu não quero ver nada, só quero um pouco mais de respeito.
- Por acaso esta Praia é sua? Quanto você pagou?
- A Praia não é minha, mas também não é sua e, mesmo que fosse, nada te dá o direito de ficar com festas até altas horas e sujar a Praia com os restos de tua festa.
- A casa é minha, eu dou festa até à hora que eu quiser.
A conversa foi esquentando até virar em agressões verbais. De tudo o que se ouviu, ficou marcada a ameaça que Clodoaldo fez a Gregório:
- Cuidado velho, você vai amanhecer com a boca cheia de formiga.
A discussão foi desfeita e, a partir daí, o clima passou a ter cara de guerra. Lauro, o vizinho, não poderia imaginar que dessa discussão toda fossem surgir novos confrontos.
Passado este dia, e talvez para fazer pirraça, Clodoaldo e Glória intensificaram as noitadas com outras festas mais frequentes e, desta vez, com pessoas ainda mais desordeiras, que chegavam até a fazer uso de drogas em público. Paterniano e Lauro tinham tomado uma decisão e iriam comunicar os fatos à polícia. Lauro queria esperar para o outro dia, mas Paterniano decidiu ir a pé até o postinho mais próximo que ficava no Pântano do Sul. Passou em frente da casa dos gaúchos e foi em direção ao morro.
Foi a última vez que foi visto vivo, no outro dia, seu corpo foi encontrado morto à beira da praia dos Açores. A causa da morte foi asfixia por estrangulamento. Ele tinha sido assassinado, não se sabe por quem. Apenas, sugeria-se que o casal de gaúchos tivesse participação. Seu corpo foi levado para o IML do Estreito, e lá, depois da autópsia, ficou à disposição da família, para levá-lo até o velório. A mãe de Paterniano, dona Vera, morava em Linhares, no Espírito Santo, e foi pedido que o corpo aguardasse no IML, porém não havia vaga na câmara fria, e então, a pedido de Lauro, o auxiliar legista disse que a única forma do corpo esperar fora da câmara por mais tempo seria embalsamá-lo. Talvez, quase isso, pois os materiais que o IML tinha para tal procedimento não eram os mais adequados. Suas vísceras foram retiradas, principalmente, os intestinos, que se decompunham mais rapidamente em relação aos outros órgãos, em face dos microrganismos naturais. Uma injeção de formol foi dada na veia para coagular o sangue. O buraco formado pela ausência de órgãos no abdômen foi preenchido com estopa, na falta de outro material próprio para o ato. O corpo então aguardou fora da câmara até que a mãe do defunto chegasse de viagem.
Lauro, sabendo da chegada da mãe do morto, dirigiu-se ao IML para trazê-lo e finalmente encomendar o velório. Lauro trouxe seu carro, enquanto uma viatura que saía do IML levou os dois corpos: o de Paterniano e um outro defunto, ainda fresco, para a capela do Hospital Nereu Ramos. No caminho, a caminhonete sofreu um acidente e os dois corpos com o motorista despencaram, na curva do Morro das Pedras. O veículo incendiou e os corpos pegaram fogo. A família, sabendo da notícia, foi para o local. Ficaram com dúvida para reconhecer os corpos devido à desfiguração parcial formada pelas queimaduras. Lauro, que sabia das estopas no abdômen, logo esclareceu, inclusive a imprensa que estava no local:
- O meu vizinho Paterniano é aquele que tem um monte de estopa no abdômen. O outro não tem porque havia falecido há poucas horas. O técnico do IML confirmou a versão sobre o brilho de uma câmera de televisão, que gravou tudo. O corpo de Paterniano foi novamente aberto e as estopas estavam lá, um pouco queimadas conforme o laudo do IML. No outro dia, um jornal sensacionalista local dava a manchete: Morre o homem estopa!
Assim, através dos anos, depois da história trágica de um homem bom, humilde e que foi vítima da intolerância humana, que a expressão transformou-se com o tempo. Muitos bairristas no início chamavam de estopô, depois, mais à frente, já diziam estepô, e de tanto virar notícia na boca do povo, a palavra se modificou. Nascia, sob a terra leve do cemitério do Pântano do Sul, o Primeiro Istepô.

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